( Ilustração por João Miguel )
Sete horas da manhã. Marie levantou-se da cama, despiu sua pele de seda, amassada com a noite anterior, inquieta e opaca. Fez sua crônica matinal ainda nua. Sentia-se embriagada, entorpecida, junto a uma sensação de ter dormido não mais que alguns minutos. Foi quando começaram os delírios.
Caminhou até a porta do quarto. Sentiu o odor acre do suor seco impregnado em sua pele. Uma última espiada no quarto e reparou no homem que ainda dormia em sua cama. Adentrou na sala, receosa e tépida, como uma aventureira que entra numa caverna escura e virgem. De repente, uma escada prateada conduz Marie ao andar seguinte, onde há uma porta entreaberta. Nua, ela desliza seus passos sobre os degraus. Hesita em escancarar a porta, então somente bisbilhota pela fresta iluminada o que se encontrava do outro lado.
Viu um homem e uma mulher trocando intensas carícias. O homem está arranhando a pele jovem e rosada, como quem celebra sua presa, seu prêmio, e certifica-se que ninguém mais a possuirá senão ele. A mulher, mesmo que submetida a dolorosas gasturas e arrepios, corre com a ponta dos dedos os ombros e costas, acariciando-o terna e amavelmente. Marie ao ver aquela cena sentiu vibrar seu ventre. Algo borbulhava no interior de sua barriga. Foi quando teve a certeza de que estava grávida.
Então todo o sólido chão desfez-se. Sentiu uma levitação que a empurrou contra a porta, caindo num precipício impalpável que se aprofundava num chão de luz clara e ofuscante. Só quando o brilho prateado diminuiu ela pôde ver a cena mais estrondosa de sua vida: duas pessoas em volta de uma cama antiga, contemplando uma mulher dando a luz a uma criatura que, mesmo sem nunca tê-la visto, Marie sabia ser seu filho. Estranhamente essas duas pessoas apenas olhavam e não ofereciam nenhuma ajuda, enquanto a mulher, berrando de agonia, paria seu fruto já maduro. Marie começou a chorar, a rezar e chorar mais, desejando que todo aquele parto se abreviasse para que ela pudesse protejer seu filho, mas sua cabeça e membros pesavam uma tonelada e ela não conseguia se mover.
Foi quando a mulher soltou seu último suspiro e forçou a criança para fora de seu corpo, expelindo-a numa bacia posta entre suas pernas. Nesse momento um dos dois que estavam observando adianta-se e com uma faca, de aspecto bruto e enferrujado, corta o cordão umbilical em dois pontos distintos, um perto do umbigo da criança e outro já na saída do corpo da mulher. O outro expectador, antes imóvel, também se adianta e toma o recém-nascido em seus braços. Embrulha-o num lenço negro de seda, enquanto o outro estende o fragmento de cordão umbilical e entrega-o a mãe, que o recebe apavorada. Os dois viram as costas e desaparecem na escuridão.
A mulher na cama permaneceu congelada em sua expressão de horror. Marie gritou. Gritou desesperadamente. Gritou com o cerne da intenção desesperada e entristecida. Sangue jorrou em suas pernas. O mundo começou a silenciar. Marie agora gritava em silêncio, alguém excluiu o som de sua voz do mundo. Piscou os olhos para derramar as lágrimas acumuladas e baque! Estava deitada em sua cama novamente! O relógio de cabeceira marcava exatamente seis horas e cinqüenta e nove minutos. Ela retomou a consciência. Deu um gemido baixo a fim de atestar se sua voz ainda existia. Ao seu lado ainda dormia o mesmo homem que enxergava em seu sonho, por entre a fresta da porta entreaberta. Apaziguou-se. Mais um olhar ao homem e sorriu discretamente. Sentiu o ventre vibrar.
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