terça-feira, 20 de outubro de 2009

Roteiro - Jeguedê

Cena I

(Sítio rural. Noite. Um portão se abre. Escuro. Barulho de mato sendo pisado).

(Antes do rapaz bater na porta, ela se abre. Uma mulher enorme, de pele negra, visivelmente ançiã, surge).


- Pode entrar.
- Pai tá lá dentro?
- Entre, meu fio.

(Ele entra na casa).


- Tá escuro, mãe.
- Vá andando ali para aquela porta.

(Ela empurra seu braço).

(Eles caminham o trecho escuro de uma sala de estar rústica, mas bem organizada. Saem pela porta dos fundos. Ao lado esquerdo, quando pisam na varanda, está o velho numa cadeira de balanço, olhando a escuridão e contemplando o silêncio. O rapaz se aproxima).


- Benção, meu pai.

(O velho olha para o rosto do menino. Logo amacia sua expressão com muito contentamento).

- Abençoado, meu fio. Senta aqui perto do véio.
- Pai, vim vê o sinhô. Mãe disse que o sinhô anda estranho, não dorme mais na cama, só fica sentado nessa cadeira o tempo todo, como se estivesse esperando por alguma coisa.
- Meu fio.

(Ele fala bem vagarosamente).

- Tem uma hora na vida que o homem se aquieta.
- Como assim, pai?
- Um dia cê vai entender, fio. Presta atenção que tenho uma coisa pra te falar.
- Diga, painho, tô ouvindo.
- Quando eu me for, fio, você precisa ir num lugar.
- Num diga isso, meu pai. Que lugar é esse?
- Eu vou te dizer, você tem que ir no Jeguedê, fica longe, lá nos cafundó por detrás do morro, cruzando o rio, pra lá dos banco de areia.
- Pai, o que é o Jeguedê?
- É onde eu nasci, fio, no quilombo do Jeguedê.
- Mas quando eu chegar lá, o que é pra fazer?
- Ora, tu vai avisar que eu morri.

O rapaz abaixa o rosto em concordância, muito triste.


Cena II

(Uma longa estrada de interior. Tarde de sol. Asfalto pelando. O jovem está apenas no início da estrada. Ele caminha numa só marcha, com a coragem de quem foi incumbido de grande missão. Porém ele não sabe como é seu destino final, o Jeguedê. Ele confia apenas nas instruções do pai, que falecera dois dias antes. O funeral foi simples. Somente vizinhos e poucos amigos longuinquos surgiram. Entre eles um velho quase da mesma idade que seu pai).


Cena III

(Na ocasião do funeral, o velho amigo aproximou-se do jovem e disse:)


- Boa noite, meu fio. Deus abençoe você. O velho Barnabé era amigo de nós todos. Eu, no entanto, conheço ele a mais tempo que todos aqui. Nós viemos quando criança lá do lugar onde a gente morava. Começamos a plantar abóbora, melancia, cenoura, couve. Nos dia de feira, nós montavamos a barraca juntos.
- Eu me lembro do sinhô, Seu Abelardo.
- Seu pai era alguns anos mais velho que eu. Quando éramos jovens, nunca esqueci de uma coisa que ele me disse um dia, num momento conversávamos sobre meu véio pai. "Tem uma hora na vida que o homem se aquieta, Abelardo".
- Seu Abelardo, como é o lugar que vocês nasceram?
- Meu fio, só de lembra me dá um aperto nesse coração véio. Ainda sonho com aquele lugar todas as noites, fio. Foi lá que conheci minha mulher e tive o primeiro fio. Quando nos mudamos cá pra cidade, lembro dela carregando o bebê, tão pequeno, debaixo do braço. Mas depois tivemos mais oito.
- Oito!
- Nós viemos do quilombo do Jeguedê, meu fio. Lugar mais bonito e cheio de vida. Se eu pudesse escolher um lugar pra morrer, descansar de vez esse corpo que está vivo há 86 anos, seria lá no Jeguedê. Infelizmente não sei se isso vai acontecer, sabe. Para chegar lá o homem tem que fazer uma longa jornada, inclusive para dentro de si mesmo, o quê é a verdadeira jornada em si. Entende, fio?
- Sim, Seu Aberlardo.
- Tenho que me conformar que talvez eu esteja velho demais para outra jornada dessa. Enquanto isso, só posso continuar minhas visitas nos meus sonhos.
- Seu Abelardo.
- Diga, meu fio.
- Eu preciso ir no Jeguedê. Eu quero ir pra lá. Sinto que no final das contas lá não está tão distante de mim. Partirei daqui há dois dias, já está tudo planejado.
- Bendito seja você, moleque Francisco. Bendito seja.

(Seu Abelardo fixa seu olhar num horizonte distante e infinito, boquiaberto. Permanece assim por alguns segundos, e diz:)

- É Barnabé. Finalmente seu espírito vai voltar pra casa...

(Ele olha nos olhos do rapaz e dá um largo sorriso, quase sem nenhum dente na boca).

- ... e de uma vez por todas!


Cena IV

Uma trilha estreita corta uma mata densa que abriga sons e aromas nunca antes experimentados pelo rapaz. Francisco segue ligeiro e decidido, se esquivando dos ramos e folhagens. Logo ele alcança o fim da trilha de frente para um enorme rio, impossível de atravessar a nado, ele conclui. O rapaz alerta segue caminhando às margens. A noite vem e empurra o dia para o outro lado do mundo. Ele avista um ponto de luz distante e a persegue, logo constatando ser um lampião vindo de dentro de uma cabana. Perto da cabana, à beira do rio, está um pequeno cais de madeira, onde está amarrada uma jangada de porte médio, com capacidade para no máximo três pessoas. Ele sabe que sozinho seria impossível conduzir a embarcação até a outra margem. Ele espia pela janela o interior do barraco. Ao centro está uma mesa simples, com duas canecas amassadas de metal em cima. Rente à parede fica um pequeno móvel com três gavetas espaçosas e uma poltrona rústica, na qual ele decide sentar e aguardar o dono da cabana retornar. O rapaz está demasiado cansado para recusar um cochilo num lugar aquecido como aquele. Dentro de si ele nutre a expectativa de contar com a ajuda de alguém para a sua travessia. Ele sabe que para além do outro lado do rio estão os bancos de areia onde ele deve encontrar o local do Jeguedê. Após três dias de caminhada, faminto, inevitavelmente, ele adormece.

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